A cegueira das forças

A cegueira das forças

Era início de primavera. As folhas recém-nascidas cintilavam sob o sol, os dias se alongavam, e um clima romântico pairava no ar. Mavi, moradora de um bairro residencial de uma grande cidade, saía todos os dias, no mesmo horário, para correr no parque próximo de casa. Em um desses dias, tropeçou e caiu perto de algumas bromélias do parque. Bento, que por acaso estava ali — transferido naquele dia para cuidar do jardim — a ajudou a levantar. Quando os olhos se cruzaram, os corações se reconheceram antes mesmo das palavras. Dois estranhos, uma queda, um encontro fora de qualquer plano. Alguns chamam de acaso, outros de destino.

Se por um lado há aqueles que sonham com um amor de cinema — e passam a vida esperando por ele, por outro, há aqueles como Mavi e Bento, que tropeçam num amor bruto, inesperado. Para uns, o amor é bênção. Para outros, sentença. E há quem nunca o encontre. Talvez sorte. Talvez azar. Apenas o acaso — ou quem sabe o destino —, uma força sem rosto que opera sem lógica visível. Mas há uma outra força e, diferente do acaso, ela não é cega. Ela vê, mede e escolhe. Ela observa e intervém — não para equilibrar, mas para manter. Se a primeira é inocente, a segunda… eu já não coloco a mão no fogo. Enquanto uns não têm sequer acesso à água potável, ¹ outros escolhem entre duas garrafas de vinho de 60 mil reais. Mães enterram filhos em becos sem saneamento ao passo que o Estado investe em blindagens jurídicas para proteger aliados.

Onde o acaso distribui cartas às cegas, o sistema decide quem pode blefar com elas. E quando a desigualdade se alastra para além das cercas, o sistema não só enxerga: ele opera. Como nas zonas de guerra, onde o silêncio da diplomacia enterra corpos. Famílias imploram por ajuda ao mesmo tempo que o sistema garante que as armas continuem chegando — e a ajuda, não.

Deixe um comentário